Há mais de quatro décadas, a voz do xamã Davi Kopenawa alerta para a possibilidade iminente da queda do céu. Na cosmologia Yanomami, os habitantes da floresta, com o auxílio de seus espíritos, são responsáveis por sustentar o firmamento e evitar a extinção da humanidade — essa é a maneira como este povo originário anuncia que, com o desmatamento e a destruição das florestas, não há futuro para os humanos sobre a Terra.
“Se a Terra está sangrando, nós adoecemos também”
As palavras de Omama, considerado o Criador na visão Yanomami, ganharam o mundo por intermédio de Davi Kopenawa — e são hoje repetidas por seu filho, Dario Kopenawa. “Se a Terra está sangrando, nós adoecemos também”, afirma Dario Vitório Kopenawa Yanomami em entrevista à Radis. Pai e filho são, respectivamente, presidente e vice-presidente da Hutukara, associação fundada em 2004 para fortalecer as pautas do povo Yanomami.
Reconhecida no mundo todo, a luta deste líder indígena e a projeção internacional que alcançou foi uma das responsáveis pela demarcação da Terra Indígena Yanomami (TIY), em 1992, após uma leva de invasão de garimpo ilegal a partir de 1986, que provocou doenças e assassinatos em seu povo. Trinta anos após a demarcação, completados em 2022, os Yanomami sofrem novamente com a invasão do território e a chegada de doenças e do crime organizado — o que interrompeu um período de recuperação da floresta e da saúde das pessoas, em que a população Yanomami cresceu de cerca de 10 ou 15 mil, no início dos anos 1990, para 31 mil indígenas atualmente, como ressalta Dario.
A nova onda de invasão tornou-se ainda mais cruel, porque contou com o apoio do ex-presidente Jair Bolsonaro e ganhou escala industrial, como destaca o vice-presidente da Hutukara. “Não é mais garimpo ilegal. É mineração”, afirma. Nascido na comunidade Watoriki, no curso do Rio Demini, no Amazonas, Dario começou os estudos em 1995, no curso de formação de professores Yanomami, e ingressou no ensino superior em 2011, para estudar Gestão Territorial Indígena, na Universidade Federal de Roraima (UFRR). Na sede da Hutukara, em Boa Vista (RR), ele conversou com a Radis sobre o passado, o presente e o futuro das lutas Yanomami pelos direitos indígenas, pela Amazônia e pelo Planeta Terra.
Como o garimpo machuca a floresta e desestrutura o modo de vida do povo Yanomami?
O garimpo é uma praga, igual um cupim. Se você derruba a casa dos cupins, meia hora ou duas horas depois eles colocam a casa de novo. Na década de 1980, no ano de 1986, quando a Terra Yanomami foi invadida pela atividade de garimpo ilegal, ali começou a primeira violação do nosso território e uma violação do humano também, de nós Yanomami. A gente sofreu muito nessa década, quando entraram quase 40 mil garimpeiros. O nosso território não estava demarcado. Os governos federal e estadual não tinham interesse em demarcar. Meu pai lutou por quase 15 anos para demarcar. Demorou muito. E os Yanomami morreram bastante. Quase reduziram a população em 20%. Não tínhamos sido vacinados contra o sarampo e a febre amarela. Éramos muito frágeis.
Como foi essa primeira onda de invasão na década de 1980, antes da demarcação?
Quando os garimpeiros entraram, levaram muitas doenças. Tuberculose, malária, diarreias. Nessa época, o governo federal não tinha noção para proteger os Yanomami. Os ex-senadores estavam muito fortes, como o ex-governador do estado, Romero Jucá, que era presidente da Funai [entre maio de 1986 e setembro de 1988]. Ele trouxe o garimpo de Serra Pelada [no Pará]. O nosso território foi invadido. Com a luta dos povos Yanomami e Ye’kuana, a gente já alertava há muito tempo sobre isso.
“A Terra é a nossa mãe. Por isso a gente se conecta e sonha com ela.”
Como isso afetou a relação dos Yanomami com a natureza?
A Terra é a nossa mãe. Ela que cria, sustenta, dá o fruto, o ar e os rios limpos, as frutas como buriti, açaí, castanha, ela oferece pra gente. Por isso a gente se conecta com ela, a gente sonha com ela, a gente ouve em sonho o som da floresta e de toda a biodiversidade da Terra Yanomami. Se a nossa mãe fica doente, com alguma ferida, nós sentimos dor também. Os garimpeiros fizeram bastante buracos, trouxeram mercúrio, nosso território adoeceu. Muita gente pensa nos danos ambientais e na terra destruída, mas, na nossa cosmologia, a Terra faz parte do ser humano. Ela é ser humano. Ela está cheia de ferida e sangue: quando se vê cheia de buraco com lama, isso para gente é o sangue. Se a Terra está sangrando, nós adoecemos também. De malária, gripe, tuberculose e câncer. As crianças estão caindo os cabelos. Há muitos anos a gente fala isso. Meu pai tem quase 48 anos de luta e resistência em defesa da natureza e da floresta, da Amazônia, em geral. Hoje a Terra Yanomami está poluída de maquinário e mercúrio. Por isso nós adoecemos. Como somos filhinhos da Terra, a gente adoece.
São 30 anos da demarcação da Terra Yanomami, completados em 2022. De lá para cá, o que houve de avanços e retrocessos?
Depois da demarcação, foi como uma criança que nasceu e a gente registrou no cartório. Nós, Yanomami, não tínhamos noção de como seria em longo prazo. A gente estudou, se formou nas universidades, criamos a organização Hutukara, foi uma conquista muito grande. Isso é uma história de resistência para o povo Yanomami e para o futuro também. É um grande presente para as gerações, para quem está nascendo e crescendo hoje. Os nossos bisavós, tios, tias, morreram com as invasões e os assassinatos, como no massacre de Haximu, em 1993. São 30 anos de resistência, mas ainda continua o genocídio e as violações graves de direitos humanos. Metade da vitória nós ganhamos, através da legislação brasileira que garante o nosso território na Constituição, o artigo 231; mas, por outro lado, nós perdemos muito. Em 20 anos, a população Yanomami cresceu. Somos 31 mil Yanomami. A gente cresceu e melhorou muito. Mas depois de 20 anos, começou de novo a invasão. É um cenário repetitivo.
Em meados de 1993, o mundo tomou conhecimento de um crime chocante no coração da Amazônia, na fronteira do Brasil com a Venezuela: dezesseis Yanomami, entre crianças, mulheres e idosos, foram assassinados por garimpeiros na comunidade de Haximu, em Roraima. O episódio conhecido como Massacre de Haximu é o primeiro e único crime julgado, até então, como genocídio no Brasil.
Hoje escutamos novamente que o Estado virou as costas para os Yanomami. O que favoreceu essa nova entrada de garimpeiros?
Hoje, nossos velhos historiadores acabaram. Nós perdemos os nossos avós, durante a briga pela exploração da TIY. Estávamos recuperando a nossa vida normal, a nossa mentalidade, o nosso pensamento, salvando, respirando, porque a gente sofreu muito na década de 80. E nos últimos quatro anos, começou de novo o cenário repetitivo. Na década de 80, não tinha muito o garimpo de maquinário pesado, eram manuais, com bateia na cabeça. Não tinha estrutura industrial. Era mais ou menos artesanal, mas estragava muito os nossos rios. Causava grande conflito com os garimpeiros, muitos guerreiros morreram, reduziu a nossa população. Ficamos entre 10 e 15 mil pessoas nessa tragédia. Um absurdo que aconteceu. Na década de 80, a gente está falando de garimpo ilegal. E hoje percebo uma atividade de mineração.
“O nosso território Yanomami foi destruído nos últimos quatro anos.”
Por que você afirma que não é mais garimpo ilegal e sim mineração industrial e predatória?
Não sei o que vocês, não indígenas, estão percebendo. Sou Yanomami, não conheço esse sistema de garimpagem, mas percebo atividades mais pesadas, mais de 20 mil garimpeiros na TIY. Hoje é um modelo da cidade, com capacidade e inteligência. Quantos maquinários têm aí? O nosso território Yanomami foi destruído nos últimos quatro anos. Quase 4.400 hectares foram destruídos. Hoje o sistema de mineração na Terra Yanomami tem internet, aviões, helicópteros e apoio de mercados internacionais. Os empresários são cheios de dinheiro. O Estado brasileiro apoiou essa atividade de mineração. São maquinários pesados. O crime organizado entrou na TIY, com facções. São dragas de quase 2 metros de altura nos rios, com toneladas e toneladas. Não é mais garimpo ilegal. É mineração.Além do desmatamento e da contaminação de rios e igarapés, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) trouxe uma explosão de casos de malária e outras doenças, com a invasão que ocorreu depois de 2016, considerada a pior desde a demarcação da TIY, segundo o relatório Yanomami Sob Ataque, publicado em abril de 2022. O documento, produzido pela Hutukara em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), indica que a mineração na TIY cresceu nada menos que 3.350% entre 2016 e 2020, segundo dados da MapBiomas.
“Os nossos rios estão cheios de lama, diesel e mercúrio.”
Como a desassistência agravou a situação do Povo Yanomami?
O ex-presidente da República [Jair Bolsonaro] estava envolvido, com apoio, os outros países são envolvidos e bancam a atividade. Nesses últimos quatro anos, oito Yanomami foram assassinados por arma de fogo. Isso é uma crise humanitária e sanitária. Explodiu a doença na TIY. Agora os Yanomami estão morrendo contaminados de mercúrio. Onde vamos tomar água? Os nossos rios estão cheios de lama, diesel e mercúrio. É uma situação muito vulnerável. Há 20 anos, estávamos recuperando os nossos rios. Onde havia muitos buracos, nós estávamos reflorestando. Agora piorou mais ainda, estão usando armas de fogo e de guerra. É um alerta muito grande. Como cresci nessa época de invasão [na década de 1980], continuo alertando a sociedade brasileira sobre essa atividade de exploração de mineração na Terra Yanomami.
“Somos guardiões do mundo. Sabemos proteger a humanidade.”
Os povos originários são chamados de guardiões da floresta. Qual é a importância das pautas indígenas para o futuro do Planeta?
A gente sempre fala sobre o nosso Brasil indígena. É o nosso território, a nossa casa. Assim como nós, os nossos bisavós tinham esse manejo de proteção do nosso território e da nossa floresta. Nosso Criador, que se chama Omama, deu um papel importante para nossos ancestrais: “Vou criar esse território para vocês protegerem”. Não pode estragar com desmatamento. Quando a gente vai fazer uma roça, pedimos permissão a Omama para derrubar uma árvore. A gente sabe os nossos limites, conhecemos as regras. Somos guardiões do mundo. Sabemos proteger a humanidade. Por isso, somos como parentes, ou filhos da Terra. A gente reza com as montanhas, as águas, os rios, os animais.
E como a sociedade brasileira responde a essas pautas?
São 523 anos de invasão e resistência. A sociedade brasileira é recente no território Brasil. Estão quebrando as regras. O protocolo do branco é a Constituição. Hoje, a sociedade, os parlamentares e o governo não querem respeitar a própria legislação brasileira. Sem os 305 povos indígenas, o Brasil não estaria verde agora. Se você pensasse bem, olhasse e sonhasse, onde os territórios indígenas estão demarcados, a floresta está viva. Onde há grandes capitais, a terra está desmatada. A humanidade está querendo acabar com a terra-floresta. Nós estamos contribuindo muito nas redes, nos jornais. Mas o modo de viver do branco é muito difícil, não quer raciocinar com o que a gente fala. Esse ano terá um grande Acampamento Terra Livre (ATL), que é um grande fórum para chamar atenção das autoridades. Queremos viver em paz com vocês, não indígenas. O nosso território é um. Não tem dois. Se a gente acabar, onde vamos viver? Tem outra Terra? Daqui a 100, 200 anos, vamos brigar por terra. Já está acontecendo isso: nossos territórios estão protegidos pela Constituição Brasileira e os brancos estão invadindo, cortando as madeiras, plantando soja. Isso já é sinal de disputa para roubar mais o nosso território. Nós, indígenas, perdemos muito. A sociedade não indígena roubou o nosso terreno. Queremos que os não indígenas apoiem a nossa luta para vivermos sem conflitos. Somos iguais a vocês, não somos diferentes. O pensamento, os olhos, o coração, a boca, o nariz, somos iguais. Meu coração respira igual ao seu.
Fonte Revista Radis